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DESTINATÁRIO DO INQUÉRITO POLICIAL: DEBATE INÓCUO?

DESTINATÁRIO DO INQUÉRITO POLICIAL: DEBATE INÓCUO?

                           Ruivaldo Macedo Costa*

 

 

No último dia 15/11/16, ao ler algumas notícias de Política e de Direito, deparei-me com várias chamadas, cada uma delas atendendo aos seus próprios interesses políticos e/ou midiáticos. Assim, o site Uol notícias, replicando notícia do Estadão, destacou: “Moro se irrita e manda PF excluir nome de ministro do STF de relatório”[1]. Se é verdade que Moro “mandou” a PF excluir nome de ministro do STF de relatório, por outro lado o “se irrita” é por conta de quem interpretou o despacho do referido juiz federal[2]. O site Conjur, por sua vez, assim destacou: “Menção a Toffoli em relatório da PF é ‘leviana’ e ‘temerária’, diz Moro”. Naturalmente outros veicularam a notícia, mas fico apenas com essas acima como “amostragem”.[3]

Isso me causou uma inquietação. Fui à leitura do despacho de duas páginas, cuja íntegra pode ser acessada no link indicado abaixo na nota 2 de fim de página,  e fiquei pensando...

Destaquemos dois parágrafos do referido despacho:

“Assim, o relatório, sem base qualquer, contém afirmação leviana e que, por evidente, deve ser evitada em análises policiais que devem se resumir aos fatos constatados.”

“Portanto, intime­-se a autoridade policial com urgência (por telefone) para, em três dias, refazer o referido relatório, retirando dele conclusões que não tenham base fática e esclarecendo o ocorrido. Deverá ainda tomar as devidas cautelas para evitar a repetição do ato.”

De fato, o art. 10, § 1°, do Código de Processo Penal – CPP estabelece a regra de que “A autoridade [policial, naturalmente] fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente.”

O Relatório policial é uma peça de cunho eminentemente descritivo (“fatos constatados”; “retirando dele conclusões que não tenham base fática”) e deve a autoridade policial evitar, tanto quanto possível[4], juízos de valor na elaboração (“afirmação leviana”), pois a opinio delicti é do titular da ação penal (nesse caso o Ministério Público Federal– MPF).[5]

Há um porém. Afirmei alhures que o art. 10, § 1°, do CPP estabelece uma regra. Deixando-se de lado a consideração mais profunda acerca da distinção entre regra e princípio, vejamos se a atuação de qualquer magistrado, tendo em vista o caso em tela, é condizente com a chamada natureza acusatória do processo penal brasileiro, conforme nossa doutrina majoritária.

Ao que me interessa de perto, e que motivou este breve artigo, é que há nisso tudo uma expressão chave e cuja discussão prévia é essencial ao debate: sistemas processuais penais.

Como bem ressalta Antônio Alberto Machado, há três aspectos nítidos e diametralmente opostos que caracterizam o sistema processual penal inquisitório e o acusatório.[6]

O sistema inquisitório: 1) acusações difusas ou genéricas; 2) procedimentos secretos; 3) concentração das funções de investigar, acusar, defender e julgar nas mãos de uma mesma autoridade – o juiz inquisidor. O sistema acusatório: 1) acusações bem delimitadas; 2) procedimentos públicos; 3) rigorosa separação das funções de acusar, defender e julgar.

No sistema inquisitivo a relação processual é linear, sem partes, sem contraditório, sem ampla defesa e conduzido por uma única autoridade, ao contrário do acusatório, o qual, em síntese, caracteriza-se por um processo de partes, informado pela publicidade e pelo contraditório, instruído dialeticamente pela acusação e pela defesa perante um juiz imparcial, imparcialidade esta que é, na verdade, a pedra de toque do processo de tipo acusatório.[7]

Quem é – ou, pelo menos, quem deveria ser – o destinatário dos autos do inquérito policial? Eis a pergunta. A quem interpreta a regra do art. 10, § 1°, do CPP literalmente e sem passar por necessário filtro constitucional (princípio), certamente ainda o juiz. Ao contrário, em defesa da natureza acusatória, o titular da ação penal.

No primeiro caso, estamos diante de uma posição ainda inquisitorial do processo penal brasileiro (manutenção de regras em detrimento de princípios); no segundo, diante de uma posição acusatória (regras “filtradas” pelos princípios).

Nesse sentido, “por conta da adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, outorgando ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, não há como se admitir que ainda subsista essa necessidade de remessa inicial dos autos ao Poder Judiciário. Há de se entender que essa tramitação judicial do inquérito policial prevista nos arts. 10, § 1°, e 23, do CPP, não foi recepcionada pela Constituição Federal.”[8]

Assim, pois, preserva-se uma das características inerentes e essenciais à jurisdição: a imparcialidade.[9] A tramitação direta entre Ministério Público e Polícia permite, sem dúvida, a preservação da imparcialidade do órgão jurisdicional na medida em que o afasta de qualquer atividade investigatória que implique formação de convencimento prévio a respeito do fato noticiado e sob investigação.[10]

Parece-nos que essa discussão acerca do destinatário do inquérito policial levantada aqui é apenas a ponta do iceberg para o debate de algo mais profundo: a natureza inquisitória ou acusatória do processo penal brasileiro, a qual serve de base para as condutas concretas e diárias dos sujeitos processuais. A atitude, para além de mera discussão teórica, tem nítidos contornos práticos na eventual restrição ou privação de direitos fundamentais do cidadão, em especial a liberdade.

 

*Professor Auxiliar de Direito Penal e Processo Penal da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, campus XX (Brumado). Pós-graduado lato sensu em Ciências Criminais pela Universidade Jorge Amado - UniJorge/JusPodium (2003). Professor de Direito Penal, Processo Penal, Prática Jurídica Penal e Legislação Penal Extravagante da Faculdade Maurício de Nassau/Salvador. Professor de Prática Jurídica Penal, Direito Penal I e II da Faculdade de Ciências e Tecnologia - FTC. Professor de Prática Jurídica Penal da Faculdade Dom Pedro II. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Associação Educacional Unyahna. Ex-professor de Direito Penal, Prática Jurídica Penal e Legislação Penal Extravagante da Faculdade de Direito da Faculdade Baiana de Ciências/Maurício de Nassau - FABAC (2006/2010). Ex-professor de Direito Penal, Prática Jurídica Penal e Legislação Penal Extravagante da Faculdade de Direito da Faculdade Dois de Julho (2009/2010). Conselheiro Suplente do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia. Advogado Criminal.

 

 


[1] http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/11/14/moro-se-irrita-e-manda-pf-excluir-nome-de-toffoli-de-relatorio.htm

[2] Veja aqui a íntegra do despacho: http://s.conjur.com.br/dl/moro-irrita-pf-determina-suspeitas.pdf

[3] O portal “Vermelho” noticiou: “Depois de vazamento, Moro manda PF excluir Toffoli de relatório”, ressaltando que “Depois dos documentos vazarem, como de praxe, para a grande mídia, o juiz federal Sérgio Moro mandou a Polícia Federal retirar o nome do ministro Dias Toffoli do relatório 744/2016 que contém a análise de material apreendido com o economista Maurício Bumlai, filho do pecuarista José Carlos Bumlai.” Salientou também que a influência do pecuarista não era “somente em agentes políticos da Administração Pública, mas também na Suprema Corte, na pessoa do Ministro Tofffoli” e que “Depois da reação dos ministros do STF, em especial Gilmar Mendes, o juiz Sergio Moro determinou, nesta segunda-feira (14), que o nome de Toffoli seja excluído do relatório, afirmando que a menção ao ministro do Supremo foi ‘sem base qualquer’”. http://www.vermelho.org.br/noticia/289692-1

[4] É impossível em qualquer atividade humana serem evitadas, ainda que minimamente, as subjetividades.

[5] A RESOLUÇÃO CJF Nº 63, DE 26 DE JUNHO DE 2009, dispõe sobre a tramitação direta dos inquéritos policiais entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. disponível em: http://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-geral/atos

[6] Quanto ao MP, embora a doutrina majoritária entenda ser o MP “parte imparcial” (sabe lá Deus o que é isso), na esteira do ensinamento de Renato Brasileiro de Lima “partilhamos do entendimento de que a concepção do MP como parte imparcial não é compatível com um processo penal acusatório”. In: Manual de processo penal. 3. ed. Salvador: Juspodium, 2015, p. 1197/1198.

[7] Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 18/26.

[8] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 3. ed. Salvador: Juspodium, 2015, p. 152.

[9]  O CPP ainda traz uma série de resquícios do sistema inquisitório. Por exemplo: possibilidade de requisitar instauração de inquérito policial (art. 5°, II), remessa de inquérito policial ou peças de informação ao procurador-geral em caso de discordância de pedido de arquivamento (art. 28), gestão de ofício da prova (arts. 156, I e II, 209, 234).

[10] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 3. ed. Salvador: Juspodium, 2015, p. 153.

 


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