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O LÉXICO

O LÉXICO

I. O Léxico[i]

D. A. Cruse

Tradução e notas: Braulino Pereira de Santana

Publicado neste sítio eletrônico em: 21/02/2019.

 

1. Introdução

Partindo de um ponto de vista simples, os elementos essenciais para a articulação da linguagem são, em princípio, um conjunto de unidades básicas associadas a um conjunto de regras que combinam esses elementos em unidades complexas maiores e mais amplas, como frases e sentenças. Uma lista de unidades básicas constitui o léxico da língua; regras combinatórias específicas constituem a gramática.

As unidades básicas são providas tanto de forma quanto de significado (em um sentido mais amplo); deduzimos isso por meio de entradas lexicais, e tanto forma quanto conteúdo especificam as informações necessárias para a aplicação peculiar das regras gramaticais. As regras combinatórias não nos dizem que somente formas complexas são permitidas na língua, mas também como seus significados são combinados.

Quais as unidades que são listadas no léxico? A resposta óbvia é que essas unidades são as palavras, e as tomamos como unidades (embora isso não seja diretamente uma questão tão simples como parece ser à primeira vista). Para as pessoas leigas, a coisa mais importante sobre uma palavra é que ela tem significado; este capítulo parte de um viés similar, focando as palavras e seus significados. Vamos começar observando que tipo de coisas as palavras são, e como os lingüistas as vêem.

2. Palavras

É notória a dificuldade em estabelecer uma definição de palavra satisfatória para todas as línguas, e até mesmo a noção de palavra para uma língua em particular. Podemos assumir, a partir do famoso exemplo de Wittgenstein sobre a palavra jogo, não ser possível nenhuma definição sucinta aplicável a todos os casos, algo bem próximo é observar os traços característicos de exemplos centrais de uma classe.

2.1 Formas lexicais, unidades lexicais e lexemas

A palavra palavra é usada com diferentes sentidos, e será utilizada aqui também para clarificar o mais importante deles, pelo qual vamos começar. Suponha que estejamos fazendo jogo de palavras cruzadas. É bem possível que, digamos, caminhar seja a resposta correta para uma das perguntas do jogo, mas caminhado não seja: dessa perspectiva, caminhar e caminhado são palavras diferentes. Imagine agora alguém que se depara com a sentença (1):

(1)?Eu desconfirmei o prognóstico do médico   

e pergunta: “Será que existe no português a palavra desconfirmar? Vou dar uma olhada no dicionário”. O que essa palavra quer dizer nessa sentença? Não está claro o que ela significa num contexto de palavras cruzadas, já que sentenças vagas podem conter desconfirmei, mas a pergunta está sendo feita em relação a desconfirmar. Nessas alturas, vamos fazer uma distinção terminológica entre palavras estruturais (word forms) e lexemas (lexemes). Podemos começar dizendo que caminhar e caminhado são palavras estruturais diferentes; assim como desconfirmar e desconfirmado; enquanto caminhar e desconfirmar representam diferentes lexemas. Assim, caminhar e caminhado são palavras estruturais pertencendo ao mesmo lexema.

O que é, então, um lexema? Em princípio, vamos dizer que são as unidades listadas num dicionário. Um dicionário fornece uma lista de lexemas de uma língua, e cada lexema é indexado por uma de suas palavras estruturais. (Palavras estruturais que um dicionário usa para indicar um lexema são, ao menos, parcialmente, uma questão de convenção. Em português, os verbos são listados em sua forma infinitiva: amar, caminhar; assim como em francês: aimer, marcher; em inglês, em sua forma raiz: love, run; já em latim, os verbos são listados na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, seguidos de suas formas na segunda e terceira pessoas do singular, também do presente do indicativo, e no infinitivo:  amo, as, at, amare; ambulo, as, at, ambulare.)

Num aspecto mais técnico, um lexema é um conjunto relacional de significados associados a um conjunto de palavras formais. Por vezes, sentidos associados a uma palavra estrutural única não estão claramente relacionados, é o caso de banco (instituição financeira) e banco (móvel para decoração de uma casa). Isso, entretanto, seria assinalado como diferentes lexemas. Em outros casos, uma relação pode ser facilmente intuída, é o caso de posição (lugar), posição (opinião) e posição (situação num emprego, por exemplo); esses casos serão considerados como pertencendo a um mesmo lexema. A maioria dos dicionários apresenta entradas principais separadas para lexemas distintos, mesmo quando eles compartilham as mesmas formas; mas grupos de significados relacionados são apresentados como fazendo parte de uma única entrada principal. O que queremos dizer com “um conjunto de palavras estruturais relacionadas” é um conjunto de formas que diferem somente em relação a afixos flexionais (tais como afixos indicativos de singular e plural para nomes, verbos e numerais; indicativos de gênero masculino e feminino para nomes; ou pessoa, passado, presente e futuro para os verbos).

Tudo bem até aqui, mas como designamos os três itens individuais posição? É comum chamar distintos significados de sentidos. Mas o que é exatamente um complexo som-significado? Podemos chamá-lo de unidades lexicais. Hoje em dia, em muitos contextos (talvez a maioria deles) está bem claro o que palavra quer dizer: as expressões palavras estruturais, lexema e unidades lexicais serão usadas, assim, somente quando houver um perigo de confusão.

2.2 Palavras estruturais particulares:  pistas gráficas e fonéticas

Os mais modernos sistemas de escrita (e o Português não é exceção) assinalam as fronteiras entre as palavras (aqui, neste caso, palavra no sentido de palavra estrutural) por espaços entre elas. Isso faz com que a leitura se torne muito mais fácil. Geralmente não há, entretanto, uma analogia entre os espaços na escrita e na língua falada, embora seja, com freqüência, uma surpresa para as pessoas leigas: na língua falada, os espaços são demarcados perceptualmente e de maneira clara. Pode haver, todavia, sinais de outros tipos que indicam posições fronteiriças entre as palavras na língua falada. Em muitas línguas, por exemplo, há um padrão de tonicidade para as palavras, como no Tcheco, em que elas são sempre acentuadas na primeira sílaba. Outros sinais podem ser mais complexos ou sutis. Por exemplo, partindo de um dado substancial, os falantes do inglês podem discernir perfeitamente a partir do som as diferentes posições e as fronteiras entre as palavras, como em night rate[ii], e Nye trait, e entre parks treat e Park Street, ao menos quando elas são cuidadosamente pronunciadas, mesmo não havendo silêncio entre elas. Isso pode acontecer quando, por exemplo, uma variante /r/ que ocorre no começo de uma palavra, é precedida por /t/; diferente novamente se o /t/ é precedido de um /s/.

 

2.3 Propriedades gramaticais das palavras

As extensões prototípicas de uma sentença (sem explorar aqui as exceções), constituídas por palavras estruturais, podem ser reconhecidas pelo fato de que elas são os maiores pedaços da sentença que não podem ser interrompidos por inserção de material novo. Observe a sentença O governo se opõe fortemente à desnacionalização. Algumas possibilidades de inserção de material novo são as seguintes:

O (atual) governo, (aparentemente), se opõe, (muito) fortemente (e implacavelmente) à desnacionalização (tardia), mas... etc

Note-se que todas as inserções respeitam as fronteiras entre as palavras e quase todas as fronteiras entre as palavras podem ser interrompidas.

Partes das palavras também não podem ser reordenadas (*nacionalizaçãodes), embora, ao menos em línguas com alguma liberdade de ordenação de palavras, as palavras elas próprias podem ser rearranjadas (obviamente em graus variados).

2.4 Propriedades semânticas das palavras

Há incansáveis controvérsias sobre o que uma palavra pode possivelmente significar. Primeiro, embora não seja tão controverso assim, pode-se pensar que não poderia haver sentido, por exemplo, em “comer milho  enquanto encaramos o sul num domingo de manhã”. Entretanto, um breve período de reflexão poderia nos convencer da leitura de que tal sentido não seja assim tão impossível, ou meramente improvável em nossa cultura[iii]: em uma sociedade onde o milho era ritualmente dedicado ao deus do sul, não seria de todo surpresa se toda essa sentença fosse enquadrada como uma única entrada lexical. Podemos observar duas controvérsias mais sérias em relação às possibilidades de significado da palavra, a unidade conceitual e a totalidade interna.

Quaisquer atrativos de uma etiqueta lexical podem ter alguns graus de coerência conceitual. Vamos restringir a nossa atenção ao que pode se referir a um substantivo: num sentido mais amplo, existem “coisas”. Coisas, prototipicamente, são caracterizadas por continuidade espacial e persistência temporal. Coisas não-prototípicas podem possuir algo que lhes confere unidade. Em minha frente, quando escrevo, posso ver, entre outras coisas, uma garrafa de água mineral Buxton, uma fotografia de Heth Ledger e Jake Gyllenhall no filme Brokeback Mountain e uma bola de meia. Há alguma chance de que esses objetos sejam designados coletivamente como um substantivo? Nesse sentido, sim: eles poderiam constituir a totalidade de minhas posses no mundo, e podem ser substantivos por isso (constituindo o meu espólio, quando eu morrer). Mas isso não poderia ser um substantivo num conjunto particular de coisas. Eles poderiam ser, alternativamente, os requisitos para, digamos, uma cerimônia para o reino do deus Nga[iv] (ou qualquer uma outra coisa). Na ausência, contudo, de tais fatores unificadores extrínsecos, os itens mencionados não poderiam ser coletivamente nomeáveis.

O que eu chamo de totalidade interna pode ser mais facilmente ilustrado que explicado. Tome-se o sintagma um homem muito grande. A noção de que poderia existir uma palavra significando homem grande não é de todo exótica (pense num gigante), como também a idéia de uma palavra significando muito grande (no sentido de enorme); poderia bem ser uma palavra significando homem muito grande (talvez um colosso), também. Mas, que tal uma palavra significando muito...homem isto é, um substantivo tal que qualquer adjetivo modificando-o modificaria também o intensificador? Isso, por certo, vai de encontro às nossas mais profundas intuições semânticas: é um sentido impossível para uma palavra. O mesmo poderia ser verdade em relação a uma palavra como beve significando bebida fria ..., tal que beve wine significaria beber vinho gelado (palavras significando beber vinho ou vinho gelado ou até mesmo beber vinho gelado poderiam não ser consideradas). A explicação pra isso é apresentada nas linhas que seguem. Primeiro, precisamos separar componentes dependentes e independentes de uma combinação semântica. O componente independente é aquele que rege as relações externas da combinação como um todo. Dessa forma, por exemplo, em muito grande é grande que rege a combinabilidade do sintagma muito grande com os outros itens. Assim, o excedente de, digamos, ?muito grande ar é uma dúvida de conflito entre grande e ar – não há um conflito entre muito e ar (pense em ar muito frio). Por razão semelhante, o item independente em vinho gelado é vinho, e entre beba vinho gelado é beba. Esse processo racional nos permite estabelecer cadeias sucessivas de dependência semântica (não é simplesmente uma questão de se os elementos numa série são expressos com palavras diferentes, ou são incorporados ao sentido de uma única palavra). Por exemplo, a série para homem  muito grande é:

homem + muito + grande

e para beber vinho gelado é:

beber + vinho + gelado

O embaraço que observamos nos diz que os elementos que constituem o significado de uma palavra podem formar uma cadeia de sucessão contínua, sem vazios precisando de preenchimentos de elementos de fora da sentença.

3. Semântica Lexical

Na Lingüística, o estudo dos significados das palavras é chamado de semântica lexical. Por trás desse emblema, e de uma variedade de esferas de interesse, florescem orientações teóricas e métodos de estudo.

3.1 Recortes teóricos

De uma maneira bem ampla, prosseguir com a questão do estudo do significado depende do quadro que se estabelece para definir que tipo de coisa o significado é. Algum domínio de questões maiores será útil como um background para discussões mais detalhadas que se seguirão. Podemos nos concentrar basicamente em dois pontos: holismo X localismo, e a relação entre significado lingüístico e conceitos. Vamos começar com o debate holismo X localismo. Essencialmente, um holista acredita que o significado de uma palavra é fundamentalmente relacional, o que quer dizer que é uma questão de relações com outras palavras na língua. Um localista acredita que o significado de uma palavra é auto-suficiente, e pode ser descrito independentemente dos significados de outras palavras.

3.1.1 O recorte contextual/holístico

Em Lingüística, o que os filósofos da linguagem chamam de teorias holísticas é geralmente chamado de teorias contextuais. Essas teorias são de variados tipos: duas delas serão brevemente ilustradas aqui.

O primeiro tipo se enquadra no centro do que se conhece como semântica estrutural. A seguir, ilustraremos a noção básica da independência dos significados. Pensemos, por exemplo, como uma criança aprende o nome dos animais. O fato de que uma criança pode dizer Isso é um cachorro toda vez que lhe é mostrado esse animal para que ela o identifique não prova que ela compreendeu o que cachorro quer dizer; não menos importante é que ela poderia evitar dizer Isso é um cachorro quando tivesse diante de um gato, uma raposa ou qualquer uma outra coisa. Em outros termos, o significado de cachorro (ou de qualquer uma outra palavra) não pode ser aprendido isoladamente. Um estruturalista tal como Lyons (sua obra fundamental é Lyons (1963)) se fundamenta nesse insight básico, e caracteriza o significado de uma palavra em relação a sua posição numa rede de relações. Vamos considerar o que isso significaria no caso de cachorro. Primeiro,  cachorro pertence a um conjunto de palavras com as quais existe uma relação de exclusão, o que quer dizer que o que implica Isso é um cachorro não implica isso é um gato / um leão / um camelo / uma vaca / um esquilo/ etc; além disso, todos eles estão dentro da denotação de mais um termo inclusivo: animal. Animal, ao menos na leitura que fazemos desse termo aqui, também pertence a um conjunto cujos membros são mutuamente exclusivos (incluindo inseto, peixe, pássaro etc); por sua vez, os membros desse conjunto se incluem no conjunto de coisas que estão vivas, e assim por diante. Mas cachorro também mantém outros tipos de relações, por exemplo, com rabo, pata, cabeça; com pequinês; com latir, uivar; com canil, com suas próprias relações com outras estruturas, tais como cabana, cabine, casa, e assim prossegue. De fato, toda palavra está ligada direta ou indiretamente, por meio de links específicos, tais como é um, não é um, tem um, faz parte de, mora em etc., com todas as palavras que virtualmente fazem parte do léxico: do ponto de vista holístico, o significado de uma palavra não é inteiramente de todo compreendido até que todos esses links sejam conhecidos (embora, obviamente , alguns links são mais centrais de que outros).

Uma versão alternativa da teoria contextual toma como origem o dístico de Wittgenstein: Não pergunte pelo significado, pergunte pelo uso. Isso é sugestivo, mas é também lacunarmente impreciso como base para a teoria do significado: o que se quer dizer, precisamente, com o termo uso? J. R. Firth (citado por Mackin (1978)) nos dá uma compreensão útil quando diz: As palavras podem ser conhecidas pelas companhias que as rodeiam. Essa linha de pensamento foi desenvolvida dentro da teoria holística de significado por W. Haas. (As idéias de Haas não estão facilmente acessíveis por, em parte, não ter sido publicadas; um resumo delas pode ser encontrado em Cruse (1986, cap. 1)). Haas partiu da idéia de que toda seqüência de palavras bem formadas gramaticalmente foi semântica e integralmente normatizada, como em O cão latiu, em contraste com ?O gato latiu, ou  ?O Cão evaporou. Ele então argumenta que se duas palavras diferem de sentido, esse fato inevitavelmente se refletirá na diferença de normalidade em um contexto ou outro. Por exemplo, há uma diferença de significado entre maleita e doença cujos contextos durante a minha doença e ?durante a minha maleita são capazes de explicitar: durante a minha maleita soa mais estranho para a maioria dos falantes do português brasileiro que durante a minha doença. Haas prosseguiu caracterizando o significado de uma palavra através de um perfil de normatibilidade por meio de todos os seus contextos de boa formação, reais ou potenciais: sinonímia plena, do seu ponto de vista, são palavras que possuem o mesmo grau de normatibilidade em todos os seus contextos.

3.1.2 O recorte componencial / localista

Um localista acredita que o significado de uma palavra é uma entidade auto-suficiente que pode ser em princípio finitamente descritível. Enquanto os holistas tendem a ver o significado de uma palavra como um conjunto de relações, tanto com outras palavras ou com contextos possíveis, um localista tipicamente dirá que essas relações são conseqüência do significado da palavra em si.

As variedades mais populares do localismo retratam o significado de uma palavra como uma montagem finita de partículas elementares de significado, e cada significado conta com algum aspecto do comportamento semântico do todo. Esses “átomos semânticos” (variavelmente conhecidos como componentes semânticos, traços semânticos, marcadores semânticos) são extraídos de um inventário finito, e nas versões mais fortes da teoria são psicologicamente reais (no sentido de que se sabemos o suficiente sobre o cérebro, estamos habilitados a identificar uma estrutura neuronal correspondente a algum traço), e universais (no sentido de que fazem parte da capacidade da linguagem de que cada ser humano é dotado ao nascer). É impossível apresentar um quadro satisfatório de quaisquer dos sistemas de extensão num espaço tão resumido como este aqui, mas os exemplos que se seguem nos dão um gostinho de tais análises:

 

Potrinho =   [cavalo] [macho] [jovem]

Garota   =    [humano] [fêmea] [jovem]

Matar    =   [causa] [tornar-se] [não] [vivo]

Cadeira  =  [objeto]  [móvel]  [para sentar] [pra uma pessoa] [com encosto]

 

3.1.3 O recorte conceitual

Muitos debates centram-se sobre as relações entre significado lingüístico e conceitos, se existir algum tipo de relação (certamente deve existir), ou até aquilo que nos diz respeito neste capítulo, nos centraremos entre  significado de palavras, e conceitos. Bem antes, semanticistas (incluindo Lyons e Haas) não acreditavam que algo sólido fosse conhecido sobre conceitos; eles, por sua vez, preferiram centrar seus estudos em semântica sem referência a tais entidades. O surgimento da psicologia cognitiva tem se voltado para o estudo dos conceitos, tornando-os mais respeitáveis, e alguns desses estudos hoje não negam a importância dos conceitos. O debate agora compreende se (ou em que grau de extensão) o significado pode ser relacionado a conceitos: as palavras mapeiam diretamente os conceitos ou há um nível intermediário de estrutura semântica onde o significado das palavras pode estar localizado, captando os conceitos de maneira indireta? O presente autor simpatiza com o recorte conceitual. Um semanticista conceitual (ou cognitivista) argumentaria que não existe um trabalho teórico assumindo um nível semântico autônomo que pressuponha não existir uma performance do nível conceitual.  Ele argumentaria também que a conexão entre palavras e o mundo lá fora é mediada por conceitos, e além disso, verificaria que as relações mundo-palavra não é o recorte mais útil em se tratando do significado das palavras.

4. Quantos significados? Variabilidade contextual e significado das palavras

Muitas palavras são capazes de pressentir diferentes interfaces semânticas em diferentes contextos. Algumas diferenças são maiores e abertamente mais claras, como em:

(2) O barco encalhou no banco (de areia).

(3) Serafina trabalha num banco.

Outras vezes a diferença é mais sutil:

(4) Quem ensina matemática pra João está de licença maternidade.

(5) Quem ensina matemática pra Suane está de licença paternidade.

Aqui, inferimos do contexto que quem ensina matemática pra João é uma mulher, enquanto que quem ensina matemática pra Suane é um homem.

É importante ser capaz de decidir se duas interpretações de uma palavra em contextos diferentes representam uma ou mais de uma unidade semântica. Isso não é puramente uma questão teórica: por exemplo, um lexicógrafo terá que decidir quantas definições devem ser dadas à expressão quem ensina matemática e à palavra banco. Podemos nos posicionar dizendo que a unidade básica de significado da palavra é o sentido, e podemos dizer que uma palavra possui X sentidos se e somente se X contiver sentidos ambíguos. Precisamos agora ser mais explícitos no que queremos dizer quando afirmamos que uma palavra é ambígua.

4.1 Ambiguidade

Considere a sentença em (6):

(6) Corremos pra ver se pegávamos o banco a tempo.

Na ausência de um contexto pré-concebido, as duas leituras de banco estão em competição uma com a outra: como as duas construções visuais de um cubo Necker[v], somente uma pode ser o foco de nossa atenção num dado momento. Num contexto particular, um falante pretenderá dizer somente um dos sentidos e esperará que o ouvinte faça a mesma seleção. Não há um significado geral para banco que assuma as duas alternativas, ou opções de persistência não compreendidas, ou tomar ambos os significados de forma ampla: essas opções não estariam disponíveis (deixando de lado um deliberado jogo de palavras). Contraste isso com o caso que segue:

(7) Pedimos permissão pra falar com os professores de Mary.

Os professores individualizados a que (7) se refere, claro, podem ser tanto homens quanto mulheres, mas (a) o falante pode nem mesmo saber o sexo dos professores envolvidos e não espera que o ouvinte faça a seleção de um gênero em particular; (b) o sexo de professores pode não ser especificado por opção do falante; além do mais, a sentença (7) poderá se referir a um grupo misto. Esse critério sugere, então, que professores não é um termo ambíguo e não possui dois sentidos que correspondam a  (o) professor e professora; um dicionarista não precisaria especificar duas definições para professores. Palavras ambíguas típicas passam por testes tradicionais de ambigüidade.

4.1.1 O teste de identidade

Em João mudou de posição; e Mary também mudou, a palavra posição pode ser interpretada da mesma maneira em ambos os sintagmas, e assumir sentidos diversos também em ambos: se João mudou seus posicionamentos políticos, Mary também fez o mesmo; enquanto que se João mudou de lugar (numa sala de aula, por exemplo), Mary também o fez. Isso mostra que posição é uma palavra ambígua. Em comparação a: Eu falei com os professores; Mary fez o mesmo, não há uma pressão para interpretar o termo professores da mesma maneira (em relação ao gênero) em cada conjunto, nesses termos, professores falha no teste.

 

4.1.2 Teste das condições de verdade independentes

 

É fácil imaginar uma situação em que alguém poderia da uma resposta à pergunta que segue, tanto de forma negativa quanto de forma afirmativa:

(8) Você bebeu algo nas últimas seis horas?

Isso mostra que as leituras (a) tomar bebida alcoólica e (b) ingerir líquido têm sentidos distintos. Comparando (8) com (9), a seguir, não há possibilidades simultâneas de afirmação ou negação (como existe para (8)):

(9) Você falou com o professor?

Nesse caso, ou você falou ou não falou com ele. Só uma resposta é possível. Enquanto que em (8), é necessário saber se se refere a bebida alcoólica ou não.

4.1.3 O teste zeugma

Um contexto que ative mais de uma leitura para uma palavra ambígua pode fazer com que haja uma pane de sentidos:

(10) O velho expirou no mesmo dia em que a sua licença de motorista (expirou).

(11) Quando a cadeira ficou vaga, o comitê de reunião da universidade sentou nela por seis meses.

O efeito de pane para a ambigüidade em (11) é articulado tanto com a presença da palavra cadeira quanto pela presença de sentou nela.

4.2 Polissemia e homonímia

As leituras alternativas para uma palavra ambígua podem ser totalmente não relacionadas, é o caso de banco, ou  podem estar relacionadas, é o caso de posição (veja abaixo discussões de tipos possíveis de relações). Homonímia envolve uma palavra ambígua cujas leituras não se relacionam; se as leituras se relacionassem, diz-se que o fenômeno chama-se polissemia. Palavras homônimas aparecem com duas entradas num dicionário; variantes polissêmicas são geralmente listadas numa entrada única.

 

5. Relações de sentido

 

Relações de sentido são relações de significados das palavras. Cada palavra, claro, mantém uma relação semântica de algum tipo com uma outra palavra, mas nem todas as relações possuem algum interesse intrínseco. Para ser de interesse, uma relação precisa recorrer com freqüência significativa a um vocabulário, e precisa ser capaz de sustentar generalizações significativas. (Um tratamento muito mais completo de relações de sentido que precisam ser acomodadas aqui pode ser encontrado em Cruse (1986)).

Há duas classes maiores de relação de sentido, dependendo da relação gramatical entre as palavras que portam sentidos, a saber, as relações paradigmáticas e as sintagmáticas. As relações de sentido paradigmáticas são relações entre significados de palavras que podem ocupar o mesmo rastro sintático, e servem para unir a amplitude dos significados lexicais disponíveis num ponto particular da sentença, dentro de uma maior ou menor estrutura coerente. Tome, por exemplo, a sentença (incompleta): João cultiva um número de _____ no jardim dele. Há um conjunto estruturado de escolhas de palavras para preencher o espaço vazio. Uma das escolhas pode ser por palavras mais gerais como árvores, flores ou vegetais, ou algo mais específico, selecionando termos como coníferas, couves, cravos. Podemos observar a estruturação de um conjunto como esse em mais detalhes em um outro momento, mas já podemos observar que as palavras prevêem uma articulação com uma experiência de mundo. Relações de sentido sintagmáticas se sustentam entre palavras numa mesma sentença ou num mesmo sintagma. Intuitivamente, algumas palavras estão encadeadas semanticamente, enquanto outras estão em total conflito ou desacordo: considere-se, por exemplo, beber vinho e beber água, comparado a *beber rocha e *beber som. Há relações de coesividade entre beber e vinho que estão ausentes entre beber e rocha. Relações de sentido sintagmáticas estão, assim, envolvidas com a coerência semântica de seqüências gramaticais.

5.1 Relações de sentido paradigmáticas

São as relações de sentido paradigmáticas que têm recebido mais atenção por parte dos lingüistas. Por convenção, elas podem ser divididas em dois grandes tipos, de um lado, relações de identidade e inclusão, e, por outro, relações de oposição e exclusão.

5.1.1 Relações de inclusão e identidade I: hiponímia

Comecemos pelas relações de inclusão. Há dois tipos básicos dessas relações. Num primeiro tipo, a inclusão é de uma classe em outra, como no caso de carro e veículo, em que carros constituem uma subclasse incluída na classe mais ampla dos veículos; num segundo tipo, a inclusão é observável ao nível de entradas individuais, é o caso de dedo e mão, em que cada mão inclui um número de dedos como partes.

A relação inclusão-classe, chamada hiponímia, é exemplificada pelos dados que seguem: cachorro:animal; maçã:fruta; tulipa:flor; catedral:prédio; cerveja:bebida; cobre:metal;  siamês:gato;  égua:eqüino; atriz:mulher, e assim por diante; dos dois itens que mantêm relações entre si, o mais específico é chamado de hipônimo (é o caso de cachorro e maçã, nos exemplos acima); e o mais geral é chamado de hiperônimo (ou superordenante, termo mais comum em língua inglesa), é o caso de animal e fruta, por exemplo. Note que, embora cachorro seja hipônimo de animal, esse termo é, digamos, um hiperônimo para vira-lata.

Um hipônimo pode ser pensado como uma relação do tipo “___ é ___”, que pode preservar a verdade de declarações gerais tais como Uma maçã é uma fruta, ou Uma atriz é uma mulher. Para um item lexical X ser um hipônimo de um item Y, a verdade de X ser Y advém, logicamente, dos significados de X e Y.  A expectativa de que, se algo é X seja então bem provável que seja Y também, não é suficiente. Por exemplo, se alguém fala sobre um gato, muitas pessoas assumirão que o gato em questão é o bichinho de estimação de alguém. Entretanto, isso não nos autoriza a dizer que gato é um hipônimo de animal de estimação, porque há gatos que não são animais de estimação de ninguém, assim Gatos são animais de estimação não é automaticamente verdade em virtude de seu significado.

5.1.2 Relações de identidade e inclusão II: metonímia

A relação parte-todo, em seu aspecto lexical, é chamada de metonímia (algumas vezes de partonímia); por exemplo, dedo é uma metonímia de mão, e mão é um holônimo imediato de dedo. A noção de metonímia, como a de hiponímia, é muito mais relacional que absoluta: mão, por exemplo, é um holônimo de dedo, mas é, ao mesmo tempo, uma metonímia de braço, que por sua vez é uma metonímia de corpo. A série de relações pára em corpo, que pode ser chamada de holônimo global. Outros exemplos de metonímia são os que se seguem: braço:corpo, pétala:flor, motor:carro, lâmina:faca. Pares metonímicos prototípicos (em que X é metônimo de Y) são normais em composições como X é uma parte de Y; um Y contém um X; as partes de Y são A, B, C... e assim segue. A metonímia pode ser claramente distinta da hiponímia, embora ambas envolvam espécies de inclusão. Uma maneira fácil de perceber a diferença é notar que um dedo não é um tipo de mão (metonímia), nem um cachorro é uma parte de um animal (hiponímia).

Nem todas as porções de um objeto são qualificadas como partes:  um vaso de vidro atirado contra um chão de cimento não se quebra em partes, mas em pedaços. As coisas que habitualmente chamamos partes têm, tipicamente, uma função distintiva ou são separadas de partes co-irmãs por uma descontinuidade formal de algum tipo (ou de ambos). Por exemplo, as rodas de um carro têm a função de permitir que ele se mova suavemente pelo chão, e transmitir o poder de movimento; o volante permite que a direção do movimento seja controlado; a maçaneta da porta permite que as portas sejam abertas e sejam fechadas manualmente. A descontinuidade ela mesma se manifesta inúmeras vezes. Por exemplo, as rodas de um carro são removíveis, como também podem se mover acionadas relativamente pelo chassis; os dedos da mão não podem ser retirados, mas possuem uma certa liberdade de movimento; as descontinuidades também podem ser visuais, como os punhos de uma manga de camisa, ou a íris de um olho.

Partes podem ser necessárias ou opcionais. A necessidade em questão não é uma necessidade lógica, mas uma condição de boa formação: uma mão que perdeu um dedo continua sendo ainda uma mão, mas não é uma mão bem formada. Nesse sentido, um dedo é necessariamente (ou canonicamente) parte da mão, como um dente faz parte de um garfo. Por outro lado, rostos podem ser bem formados sem barbas, e portas podem também ser bem formadas sem maçaneta – estamos tratando aqui de partes opcionais (ou facultativas). Algumas partes são mais bem fechadamente integradas que outras. Um indicativo de uma integração mais ou menos plena é a possibilidade de descrever a parte como “anexada” ao seu todo; isso não é tipicamente normal com as partes integradas plenamente. Veja o contraste entre: A fechadura é anexada à porta (integração não plena) e *A maçaneta é anexada à colher (integração plena).

5.1.3 Relações de identidade e inclusão III: sinonímia

Os dicionários definem tipicamente os sinônimos no seguinte teor: palavras com o mesmo significado ou com significados similares.  A descrição sem dúvida se aplica a todas as palavras que poderíamos intuitivamente chamar de sinônimos: começar e iniciar; morrer e falecer; cão e cachorro; dinheiro e cash. Mas a sinonímia não é restritiva o suficiente, para se aplicar com certo grau de certeza a todos os casos, como égua e garanhão, ambos podem se referir a animais eqüinos mas não são sinônimos. Seria útil, entretanto, examinar mais cuidadosamente a noção de mesmo significado e significado similar.

Pares ou grupos de sinônimos podem ser caracterizados de acordo com quão próximos os significados das palavras são. Três graus de proximidade podem ser reconhecidos: sinonímia absoluta, sinonímia proposicional e sinonímia de proximidade.

A maior semelhança possível entre dois sentidos é a identidade, em outras palavras, de sinonímia absoluta. Uma caracterização de sinônimos absolutos baseada no recorte contextual de Haas tem sido observada de longas datas, a saber, em todos os contextos (gramaticalmente bem formados) que preservem uma igual normalidade. Isso se baseia na assertiva de que qualquer diferença de significado revelará por si mesma uma diferença de  possibilidades de co-ocorrência, daí a descoberta de um contexto em que um dos sinônimos supostos é mais normal que o outro e regule o par como sinônimos absolutos. Esse é um critério extremamente restrito, e um teste rigoroso dos pares candidatos que levem rapidamente à convicção de que sinônimos absolutos sejam difíceis de ser encontrados. De um ponto de vista semiótico isso poderia provavelmente não ser nenhuma surpresa: não existem razões óbvias para que uma língua pudesse ter duas formas com identidade absoluta de significados. Vamos observar abaixo alguns poucos exemplos possíveis (em contextos bem restritos) de sinonímia absoluta:

(i)garoto/menino:

Esse par não é sinônimo absoluto por diferenças de normatibilidade entre (15) e (16), em comparação a (17) e (18):

(15) Ele é um menino agora.

(16) Ele é um garoto agora.

(17) Ele é um garoto de programa agora.

(18) ?Ele é um menino de programa agora.

(ii) amplo/grande

(19) Que sala ampla!

(20) Que sala grande!

A diferença de normatibilidade é suficiente para desqualificar também esse par em contextos selecionados, como os contextos abaixo:

(21) Você comete um grande erro.

(22) ?Você comete um amplo erro.

(iii) leito/cama

(23) Ele se deitou no leito.

(24) Ele se deitou na cama.

Novamente, podemos desqualificar esse par como sinônimos absolutos:

(25) Ele está deitado no seu leito de morte.

(26)?Ele está deitado na sua cama de morte.

A sinonímia absoluta está mais próxima presumivelmente daquilo que as pessoas têm em mente que as faz acreditar em sinônimos, e geralmente é pouco provável que ela ocorra em línguas naturais.

Há talvez um ou outro caso, por assim dizer, de sinonímia absoluta cuja identidade de significado pode ocorrer entre formas que pertençam a diferentes variedades, especialmente diferentes dialetos de uma língua. Um exemplo óbvio pode ser fall e autumn (outono), empregados no inglês americano e no inglês britânico, respectivamente. Não há diferença em princípio para equivalentes transnacionais em outras línguas. Note, entretanto, que esse dado não poderia ilustrar uma sinonímia absoluta pelos testes de Haas, já que fall seria menos normal que autumn num dado contexto sentencial que pode ser, por outro lado, lexicalmente marcado como inglês britânico. Assumir que fall e autumn são idênticos em significado pressupõe uma noção não-Haasiana daquilo que significado quer dizer.

Sinonímia proposicional é menos restrita que sinonímia absoluta, e exemplos dessa variedade são mais numerosos, conseqüentemente. A sinonímia proposicional pode ser definida em termos lógicos: ela pode ser substituível por qualquer sentença declarativa, salva veritate, ou seja, sem que o seu valor de verdade seja modificado. Por esse critério, menino e garoto são sinônimos proposicionais porque se O menino começou a chorar for verdade, então, O garoto começou a chorar também é uma sentença verdadeira (em contextos em que caiba menino, cabe também garoto), ou seja, nessa proposição, os termos podem ser intercambiáveis, e o seu valor de verdade está sendo preservado.

Existem também poucos sinônimos absolutos e proposicionais em quaisquer línguas para justificar a existência de um dicionário de sinonímia; a maioria do que os lexicógrafos chamam de sinônimos é, em nossos termos, sinonímia aproximativa. Ilustramos isso com alguns conjuntos de sinonímia aproximativa que seguem:

(i)matar, executar, assassinar

(ii)rir, sorrir, gargalhar

(iii)caminhar, andar, perambular, errar

(iv)ansioso, nervoso, preocupado, apreensivo, temeroso

(v)bravo, corajoso, destemido, heróico

(vi)calmo, plácido, tranqüilo, sereno, pacífico

As palavras dos conjuntos acima não são necessariamente idênticas em termos proposicionais, ao menos, no entanto, alguns desses pares não são anômalos o suficiente para declarar algo e simultaneamente negar o que foi declarado:

(27) Ele não foi assassinado, ele foi executado. (em ambos os casos houve uma morte)

(28)Eles não sorriam simplesmente, eles gargalhavam. (grau de intensidade, mas não negação)

(29)Ele foi corajoso, mas não um herói. (também aqui a negação é parcial)

A sinonímia aproximativa ocorre com freqüência em testes do tipo X, ou de preferência Y, que assinala, primeiro, que Y veicula uma informação proposicional que não está presente em X; e, segundo, que a diferença é relativamente menor. Dessa forma, (30) é normal, mas em (31), temos uma informação excedente, pois a diferença de significado é muito grande; em (32) há um excedente pois não há diferença proposicional:

(30)Ele foi assassinado, ou se preferir, executado.

(31)?Ele foi assassinado, ou se preferir, surrado.

(32)?Ele foi morto, ou se preferir, privado da vida.

Sinônimos aproximativos, assim, são palavras que compartilham um núcleo saliente comum de significado, mas diferem em relação a aspectos relativamente menores. Não há, no presente, uma caracterização mais precisa para “menor” nesse contexto.

Sinônimos (de todos os tipos) geralmente ocorrem em agrupamentos, e é comum para o agrupamento ser central em relação a uma palavra neutra que se subordina a todo o resto, e da qual as outras palavras são uma elaboração semântica.  Por exemplo, matar, sorrir, caminhar, ansioso, corajoso e calmo são itens centrais, respectivamente, nos conjuntos detalhados acima.

 

5.1.4 Relações de oposição e exclusão I: incompatibilidade e co-metonímia

Observamos relações de inclusão; igualmente importantes são as relações de exclusão, especialmente aquelas que se sustentam entre itens co-irmãos sob um termo inclusivo comum. Como só existem dois tipos de inclusão, há também dois tipos correspondentes de exclusão, que podem ser chamados de incompatibilidade e co-metonímia.

Incompatibilidade é a relação que se sustenta entre, por exemplo, gato e cachorro; maçã e banana; rosa e tulipa; homem e mulher; igreja e supermercado; ônibus e trator.  A essência dessa relação é de exclusão mútua de classes: se algo é um gato, a conseqüência inevitável é que não seja um cachorro, e vice-versa – não existe nada que seja simultaneamente gato e cachorro ao mesmo tempo. O mesmo é verdade para os outros conjuntos de pares mencionados. Note que isso não se trata de uma diferença simples de significado.  Tome o caso de romance e brochura, ambos são hipônimos de livro. Eles, claramente, não querem dizer a mesma coisa; por outro lado, eles não são incompatíveis, pois algo pode ser simultaneamente uma brochura e um romance. O mesmo se aplica a mãe e médica, e a alto e louro.

Uma relação paralela de exclusão se aplica a metônimos co-irmãos do mesmo holônimo, como em nariz, bochecha, queixo, em relação a face; e roda, chassis, motor, em relação a carro, e assim por diante. Aqui a exclusão é, ao menos prototipicamente, espacial: as partes co-irmãs de todo um indivíduo não têm nenhuma substância material em comum uma com a outra.

 

5.1.5 Relações de oposição e exclusão II: pares opositivos

Oposição e sinonímia são provavelmente as únicas relações de sentido familiares às pessoas comuns. A maioria das línguas possui palavras habituais para as relações de exclusão; é uma relação cognitivamente muito básica e quase sempre todas as crianças já em tenra infância podem compreender essa noção.  Oposição é um tipo especial de incompatibilidade: pares opostos são inerentemente binários, ou seja, ambos aparecem natural e logicamente em pares.

Pares opostos perfazem um número relativamente de tipos bem claramente definidos. Os tipos mais importantes são: pares complementares; antônimos; pares opositivos direcionais e conversos.

Pares complementares são, provavelmente, os tipos mais básicos. Eles podem se distinguir de pares incompatíveis não-complementares pelo fato de que, negar um termo, logicamente implica negar o outro. Por exemplo, a Proposição P não é verdadeira implica logicamente que a Proposição P é falsa; e a Proposição P não é falsa implica que a Proposição P é verdadeira, daí, verdade e falsidade serem complementares. Elas podem contrastar com incompatibilidades comuns como cão e gato: Isto não é um cão não implica Isto é um gato. Outros pares complementares são: abrir:fechar; morto:vivo; parando;movimentando; macho:fêmea. Pares complementares dividem ao meio algum domínio conceitual sem permitir um meio-termo. Aquele que pertence a um domínio pode passar pro lado um do outro.  (O teste de negação funciona somente para itens que pertençam ao domínio pressuposto pela palavra-teste: Este pedaço de giz está morto não implica Este pedaço de giz está vivo, porque giz não pertence ao domínio das coisas que são propriamente aplicáveis a vivo e morto.) A relação entre pares complementares pode ser retratada como se segue:

Verdadeiro     \     Falso

Antônimos (num sentido restrito – termo que pode ser usado com freqüência para se referir a oposições em geral) são adjetivos em gradação (isto é, aquilo que pode ser modificado sem exceder a ação de intensificadores tais como muito, preferivelmente, extremamente, um pouco, e assim por diante). Exemplos típicos são: longo:curto; rápido:devagar; pesado:leve; difícil:fácil; grosso:fino; bom:mau; quente:frio; limpo:sujo. Eles indicam graus de propriedade, tais como: velocidade, peso, extensão, um termo denotando um valor numa escala acima de algum padrão implícito apropriado a um contexto, e o outro termo denotando um valor mais baixo que o padrão. Pares complementares distintos, eles não dividem o domínio – há uma área neutra entre eles, que pode ser descrita como, por exemplo, nem bom nem ruim, nem longo nem curto, nem quente nem frio etc. A relação entre antônimos pode ser retratada como se segue:

Extensão

Curto ---------------------------------------------------------------------------------------------------Longo

nem

curto

 nem

 longo

As formas comparativas de antônimos variam de acordo com: se pressupõem formas positivas ou negativas. Por exemplo, para algo ser mais quente que algo mais, tem que ainda ser quente: X é frio mas é mais quente que Y é, entretanto, excedente. Por outro lado, algo que é mais longo que algo mais não necessariamente tem que ser longo. Mais quente é conhecido como um comparativo de incumbência; mais longo é imparcial. A incumbência pode ser usada para definir três classes de antônimos: polar, sobreposto e eqüipolente.

Antônimos polares: ambos os membros do par são imparciais na comparação:

(33) X é pesado, mas é mais leve que Y.

(34) X é leve, mas é mais pesado que Y.

Outros exemplos são: longo:curto; alto:baixo; amplo:estreito; grosso:fino; rápido:devagar; áspero:macio.

Antônimos polares indicam graus de objetivo, geralmente propriedades mensuráveis.

Antônimos sobrepostos: um membro de um par está incumbido da comparação, o outro é imparcial:

(35) ?X é bom, mas é pior que Y.

(36) X é ruim, mas é melhor que Y.

Outros exemplos são: gentil:cruel; limpo:sujo; polido:rude. Os membros da classe possuem uma polaridade calculada, um membro pode ser laudatório, o outro, derrogatório.

Antônimos eqüipolentes: ambos os membros são incumbidos da comparação:

(37) ?X é quente, mas é mais frio que Y.

(38) ?X é frio, mas é mais quente que Y.

Outros exemplos são: feliz:triste; orgulhoso de:envergonhado de. Os membros desse grupo denotam tipicamente sensações ou emoções.

A membros de um dos grupos acima descritos se correlacionam outras propriedades, que vale a pena notar: um importante traço de antônimos é a possibilidade de questões de grau. Há duas principais formas, (a) aquelas usando um substantivo que se relaciona a um adjetivo, como em Qual é a leveza / o peso / a grossura de X?, e (b) questões com como/quanto/quão: Quão longo / grosso / pesado é isso? As características das questões de grau em cada grupo são as seguintes:

(i)Antônimos polares:   Um antônimo rende uma questão-como neutra (imparcial), a outra (para a maioria dos falantes) uma questão de alguma forma anormal:

(39) Qual o tamanho do pedaço de madeira?

(normal e imparcial)

(40) Quão curto é o pedaço de madeira?

(sobra um pouco (para baixo), mas, se temos que interpretar, essa não é uma pergunta imparcial, pois o falante avalia para baixo (curto) o pedaço de madeira, portanto é um adjetivo incumbido de avaliar para baixo).

Antônimos polares também permitem tipicamente questões-que, mas somente com aqueles termos opositivos:

(41) Qual é o comprimento do pedaço de madeira? (imparcial)

(42) ?Quão pequeno é o pedaço de madeira?

Para ambos os tipos de questão de grau, o termo que produz uma questão imparcial é aquele que indica “mais de” da propriedade de grau (por exemplo, longo é mais que a média de comprimento; grosso é mais que a média de espessura, e assim por diante).

(ii) antônimos sobrepostos: antônimo que rende uma questão-como/quão/quanto normalmente imparcial (por exemplo, Quão bom era o filme?) e sua contrapartida dá um antônimo normal, mas incumbido de uma questão-como/quão/quanto (por exemplo, Quão ruins foram os resultados dos exames deste ano?). Nesse caso, é um termo de avaliação positiva que ocorre em questões imparciais, o outro termo é o incumbido. Falando de maneira geral, questões-que/quão/quanto não aparecem com antônimos desse grupo (Quão limpo era o quarto quando você se mudou? / ?Qual era a limpeza do quarto quando você se mudou? / Quão polido era John quando ele veio ver você? / ?Qual a polidez de John quando ele veio ver você?).

(iii) Antônimos eqüipolentes: questões-como/quanto/quão normais são possíveis com ambos os termos, mas ambos são os incumbidos: Quão frio estava? Uma questão-que é possível para hot:cold (Qual é a sua temperatura?), mas esse par parece inusual nesse aspecto.

Uma propriedade interessante de antônimos sobrepostos é o traço de inerência. Tome o caso de bom:ruim. De duas coisas ruins, é sempre possível descrever uma pior: Os resultados dos exames deste ano foram ruins, mas foram piores ano passado;  A fome este ano foi pior do que ano passado. Entretanto, o uso de melhor é curiosamente restrito: Os resultados do exame foram ruins este ano, mas ano passado foram melhores; ?A fome este ano foi melhor do que ano passado. O princípio geral é que somente coisas que são contingencialmente ruins (por exemplo, onde os bons exemplos são concebidos) podem ser descritas usando melhor: coisas ruins, inerentemente, somente podem ser qualificadas como piores (e, incidentalmente) não podem ser questionadas usando Quão bom...? *Quão bom foi o acidente de John.

Pares opositivos direcionais: pares opositivos direcionais são de dois tipos principais:

(i)Direções estáticas, como em cima:embaixo; atrás:na frente; norte:sul

Oeste----------------------------------------------------------------------------------Leste

e

(ii) pares opositivos direcionais dinâmicos (geralmente chamados reversíveis), tais como subir:decair; avançar:retroceder; crescer:decrescer; alongar:encurtar; vestido:nu; amarrar:desamarrar; montar:desmontar; entrar:sair; estragar:consertar e assim por diante.

Podemos nos concentrar aqui nos reversíveis. Será notado dos exemplos dados que a noção de reversibilidade é estendida a domínios puramente espaciais para algum tipo de mudança de estado. Em termos gerais, um verbo que é membro de um par reversível denota uma mudança de um estado inicial (digamos S(1) para o estado final (S(2); seu par então denotará uma mudança de S(2) para S(1):

amarrar

S1                                                                                                                            S2

amarrado-----------------------------------------------------------------desamarrado

desamarrar

Um traço importante de tais verbos é que o caminho de mudança é irrelevante. Por exemplo, um trem entrando e então deixando uma estação poderá viajar somente numa direção: o que é importante para a entrada é sair não de algum lugar, mas chegar ao final de algum lugar, o reverso é o caso de partir. Ou tome-se o caso de amarrar e desamarrar o cadarço dos sapatos de alguém: um filme de alguém desamarrando os próprios sapatos não é idêntico ao filme de alguém amarrando-os, com a fita do filme rodando ao contrário: a natureza do processo de mudança não é especificada por verbos de reversibilidade, somente os estados iniciais e finais.

Verbos de reversibilidade possuem uma outra propriedade curiosa. Considere a sentença que segue: Serafina amarrou o nó, mas desamarrou-o novamente cinco minutos depois.  Pressupondo que novamente não sofreu ênfase, o que está sendo pressuposto ter sido repetido, pelo uso de novamente? Esse não é, em hipótese alguma, o ato de desamarrar – essa pode ser a primeira vez que Serafina, de qualquer forma, desamarrou um nó; o que é evocado é o estado de ser desamarrado. Essa é presumivelmente uma primeira reflexão da importância dos estados iniciais e finais da semântica dos verbos de reversibilidade.

Conversibilidade: São pares conversos: em cima:embaixo; pais:descendência. Diferentemente de muitos pares opositivos, ambos os termos podem ser usados para descrever  o mesmo estado de coisas: por exemplo, A está acima de B significa que B está embaixo de A, exceto em relação ao termo que serve como ponto de referência; de forma similar, A é pai de B designa a mesma relação entre A e B, sendo B descendente de A. Por essa razão, alguns lingüistas consideram uma variedade de sinônimos como pares conversos.

A conversibilidade pode ser 2-, 3-, ou 4- relações de lugares, de acordo com o número de argumentos envolvidos. Acima:embaixo são pares de dois lugares; legar como herança:herdar é uma relação de conversibilidade de três lugares (John deixou como herança uma fortuna para Serafina designa o mesmo evento Serafina herdou uma fortuna de John); comprar:vender é uma relação de conversibilidade de quatro lugares (Lídia comprou um carro por €1,000.00 de Bill descreve a mesma transação nestes termos: Bill vendeu o carro para Lídia por €1,000.00).

 

5.2 Relações de sentido sintagmáticas

Vamos nos voltar agora para as relações semânticas entre as palavras que aparecem juntas num mesmo texto. Elas podem ser divididas aproximadamente em dois tipos.  Primeiro, existem aquelas que conservam relativamente longas extensões do texto, entre itens gramaticalmente não relacionados, e que tipicamente não envolvem significado proposicional ou propriedades direcionais. Por exemplo, em O Primeiro Ministro esperou na recepção da Casa Branca acompanhado pelo seu Papai, há um registro em desacordo entre Papai e itens formais como esperar, recepção e acompanhar (Tony Blair foi à festa na Casa Branca com o seu Papai soa menos estranho); o conflito seria resolvido ao substituirmos Papai por Pai, um item proposicionalmente sinônimo. Note, neste caso, que os itens em conflito estão alguns mais distante que outros, e que não estão diretamente relacionados gramaticalmente (Papai não conflitua com seu, e nem seu Papai com por). Segundo, há relações que se sustentam entre elementos relacionados fechadamente numa mesma construção gramatical e que, com freqüência, envolvem significado proposicional e propriedades direcionais. Por exemplo, os conflitos em ?uma tia macho, ?um homem de altura forte e ?John bebeu um gabinete cheio envolve o segundo tipo de relação. Tome-se o caso desses exemplos: não há um conflito entre John e bebeu, ou entre John e um gabinete cheio, o conflito envolve especificamente bebeu e seu objeto direto gabinete cheio; o conflito envolve significado proposicional, já que pode ser somente resolvido pela substituição mesma de bebeu ou gabinete cheio por algo diferente proposicionalmente (por exemplo, comprou ou vinho, respectivamente); bebeu impõe restrições semânticas a seus objetos diretos (por exemplo, eles têm que ser líquidos).

Há três tipos possíveis de efeitos ao se juntar palavras numa construção gramaticalmente bem formada:  em qualquer desses tipos, o resultado é uma sentença normal, como em John bebeu o vinho, ou há um defeito semântico como em John bebeu um gabinete cheio ou um homem de altura forte, ou o resultado é um pleonasmo (uma redundância) como em tia mulher.

Genericamente falando, para que uma combinação de palavras seja semanticamente normal, duas condições devem ser satisfeitas. Se duas palavras são juntadas numa construção, é usualmente possível identificar quem seleciona, ou seja, quem impõe condições semânticas para que a junção seja possível, e um item selecionado, que satisfaz (ou não)  as condições; a primeira exigência para que uma combinação seja normal é que essas condições sejam satisfeitas. Isso evitará defeitos semânticos. No caso de uma combinação substantivo-adjetivo, é o adjetivo quem seleciona: compare a facilidade com que as condições semânticas  (geralmente chamadas de restrições de seleção) podem ser especificadas pela normatibilidade na seqüência que segue:

Uma mulher------------------

Não há generalização semântica que inclua, por exemplo, inteligente, alta, grávida, bem paga, canhota, todos eles combinando normalmente com o item mulher.

Uma grávida (adj.)-----------------

Aqui, a restrição é muito mais fácil de ser capturada: grávida exige um substantivo-núcleo que (a) denote mamífero, e (b) não seja especificamente marcado como não fêmea (como, por exemplo, touro).

É geralmente o caso de uma construção núcleo-modificador – do tipo, adjetivo-núcleo ou adjetivo-intensificador – em que o modificador é quem seleciona; numa construção núcleo-complemento, como beber cerveja em John bebe cerveja, o núcleo da construção, isto é, o verbo, é quem seleciona.

Em ?uma tia mulher, não há um defeito semântico, mas a combinação é excedente ao indicar que uma primeira condição deve ser satisfeita. Um item gramaticalmente dependente (modificador ou complemento) deve contribuir com uma informação semântica por essa informação não estar presente no núcleo. De fato, a noção mulher é uma parte do significado de tia, como a palavra mulher não acrescenta informação modificadora, conseqüentemente, ?uma tia mulher é um pleonasmo, ou redundância; uma tia lésbica, por outro lado, é uma seqüência semanticamente normal, pois, embora lésbica incorpore a noção mulher, o item lésbica traz uma informação nova não atribuível ao item tia sozinho.

 

6.Extensões e mudança de significado

6.1 Leituras estabelecidas e leituras ocasionais

Alguns dos sentidos alternativos de uma palavra são traços estabelecidos e permanentes da língua, e esperaríamos que valesse a pena tê-los registrados num dicionário de nomes. Podemos também pressupor que eles se espalham por uma rede neural no léxico mental de falantes competentes de uma língua. Esse é o caso das duas leituras de banco discutidas anteriormente. Numa sentença como Mary trabalha num banco, podemos dizer que o contexto seleciona uma leitura dentre aquelas que são atribuídas permanentemente a esse item, no sentido que somente um dos itens rende uma combinação normal.

Mas, tomemos um outro caso. Imagine uma recepção com um número muito grande de convidados que se preparam para um jantar mais tarde. Não existe sala de jantar ampla o suficiente para acomodar todos os convivas, que também estão divididos em dois grupos. Na chegada, cada convidado é presenteado com uma rosa ou um cravo. Quando chega a hora do jantar, o anfitrião anuncia: todas as rosas se dirijam à sala de jantar A, e os cravos se dirijam à sala de jantar B, por favor. Os usos de rosas e cravos são perfeitamente compreensíveis nesse contexto, mas esses usos não são partes estabelecidas da língua, nem esperaríamos, pra completar, encontrá-los em algum dicionário. Assume-se aqui que essas leituras são ocasionais. Como elas surgem? Não é por seleção, mas por coerção.  Se nenhuma das leituras estabelecidas cabe em um contexto, então, algum processo de geração de sentido é engatilhado para produzir uma nova leitura.

Um terceiro efeito possível do contexto é enriquecer uma leitura existente, sem produzir um novo sentido. Isso é o que acontece com o item professor em O professor de matemática de John está saindo da maternidade.

 

6.2 Leituras literais e leituras não-literais

Uma distinção freqüente é feita entre palavras de significados literais e não-literais (polissemia), e pressupõe-se que somente uma das leituras é a literal. Enquanto à primeira vista essa distinção parece intuitivamente clara, num exame mais apurado, ela não é tão clara assim. Uma coisa é evidente: um sentido literal precisa ao menos ser estabelecido; o critério para privilegiar um sentido literal do conjunto de leituras estabelecidas, entretanto, não é assim tão evidente. Dicionários geralmente ordenam suas entradas em ordem simétrica a partir do significado mais comum para a entrada na língua. Entretanto, os primeiros registros de significados de uma palavra não necessariamente capturam as intuições dos falantes em termos de significado literal. Não há dúvida, entretanto, que morrer significando expirar antecipe o significado cessar de ser válido, mas, para a minha surpresa, graduandos do inglês corrente falado no Reino Unido, quando são chamados a selecionar a leitura que sentem intuitivamente como sendo a literal, são unânimes em selecionar a leitura cessar de ser válido para o item expirar. Um outro critério possível é a freqüência numa língua: tem-se a expectativa razoável de pressupor que o significado literal deve ser o mais freqüente. Uma vez mais, entretanto, isso nem sempre está de acordo com as mais fortes intuições dos falantes nativos. Por exemplo, pouco se discute que a seqüência ter uma experiência visual significando ver é o significado literal e entender, o significado co-extensivo; entretanto, há evidências de que, a partir de um amplo corpus do inglês em uso, indica-se que entender é o significado mais freqüente. Mais dois outros critérios possíveis são, primeiro, a ausência significando, isto é, aquilo que nos vem primeiro à mente quando nos defrontamos com uma palavra fora de contexto; e, segundo, a leitura de uma delas pode ser mais plausível ao ser derivada de um processo semântico padrão. O último critério é mais fidedigno quando estão em jogo duas leituras. Tome o caso de posição, nas três leituras que seguem:

(i)lugar no espaço

(ii)emprego numa firma grande etc

(iii)opinião

Começando por (i), é fácil prever que (ii) e (iii) nascem de um processo de extensão metafórico; mas, se partirmos de (ii) ou (iii), não está clara a forma de derivação para os outros dois itens.

 

6.3 Metáfora

Há um número de estratégias para derivar uma leitura de uma outra.Três delas serão ilustradas aqui. A primeira delas é a metáfora. Metáfora é essencialmente a projeção da estrutura conceitual apropriada a um campo familiar em direção a um campo diferente e menos familiar, e depende de sua efetividade de semelhança suficiente entre os dois campos para a projeção ser inteligível. Por exemplo, no caso de expirar, projetando a noção de morrer dentro do campo ciclo da vida de, digamos, um cartão de crédito, permite-se um paralelo inteligível imediato a ser desenhado entre morte e o fim do período de uso do cartão.

 

6.4 Metonímia

 

A segunda estratégia de extensão de significado é a metonímia, que se baseia não em semelhanças ou analogias entre itens de domínios conceituais diferentes, mas em associações dentro de um domínio conceitual particular. A referência a pessoas usando rosas como rosas (no episódio da festa, acima) é inteligível, não por causa de estruturas paralelas entre o conceito de uma rosa e a pessoa designada por ela, mas por causa da associação fechada entre pessoas e rosa numa situação particular. É improvável que esse uso seja estabelecido. Um exemplo de metonímia assim bem estabelecida, da qual dificilmente nos damos conta, e que é não literal, é A chaleira está fervendo.

 

6.5 Especialização e generalização

Um terceiro processo que produz novos significados a partir de velhas formas é a mudança de inclusão, ampliando ou restringindo o significado. O significado de tome bebida alcoólica de beber é derivado do significado de ingerir bebida alcoólica, por especialização; carne especializou-se a partir do sentido de comida, de algum tipo de carne de animal usada como alimento; handsome[vi], em obra de Jane Austin, parece ser aplicável indiferentemente a homem ou a mulher, mas veio a se especializar mais tarde para se aplicar especialmente a homens, adquirindo uma nuance particular quando aplicada a mulheres; interferir em Jane Austin parece muito mais comum que intervir, adquirindo conotação desabonadora em data recente. O sentido de gato, que inclui leões, tigres, jaguatiricas, e jaguares, é derivado a partir da generalização de sentido que inclui somente felinos domésticos.

A perda completa de um sentido pode ser considerada um tipo de especialização, um exemplo disso, novamente do romance de Jane Austin, é direção que perdeu a leitura endereço (como numa carta).

 

6.6 Aperfeiçoamento e pejoração

Aperfeiçoamento é quando um termo neutro ou pejorativo se transforma num termo laudatório; e pejoração é quando ocorre um movimento contrário. A pejoração parece ser de longe a estratégia de atribuição ou mudança de significado mais freqüente, e é particularmente mais propenso a acontecer com palavras que se referem a mulheres. Exemplos de palavras que suportam leituras pejorativas são: madame, senhora, cortesã, moça, mulher da vida, e assim por diante. (As únicas duas palavras que se referem a mulheres, que Jane Miller cunhou em Womanwords, e que assinala como tendo sido o seu significado aperfeiçoado são jilt[vii], que originalmente queria dizer prostituta, e bat[viii], que perdeu a sua conotação sexual).

 

7. Agrupamentos mais amplos de palavras

 

7.1 Campos de palavras

 

Temos visto até aqui que o vocabulário de uma língua não é simplesmente uma coleção de palavras dispersas a esmo por um espaço semântico: é, ao menos, parcialmente estruturado por relações de sentido recorrentes. Em algumas áreas do vocabulário, as relações de sentido unem grupos de palavras em estruturas mais amplas, conhecidas como campos lexicais (ou campos de palavras). Vamos observar brevemente exemplos de um tipo de estrutura mais ampla, a saber, hierarquias lexicais. As hierarquias podem não fazer parte de árvores, como na figura 10.1, ou articuladas em árvores, como na figura 10.2:

A---------B---------C                                             

Figura 10.1

 

[A[B [D,E], C [F,G]]]

Figura 10.2

 

[creature[bird[robin,eagle],fish[cod,trout],animal[cat],[dog[collie,spaniel], [insect[bee,butterfly]]][ix]

Figura 10.3

Nota: Uma nota explicativa talvez seja necessária em relação à posição da palavra animal na hierarquia acima, que, para alguns falantes do inglês não britânico, por sentir que animal e creature são sinônimos, e que animal inclui bird, fish, insect etc., pode parecer anômala. Isso não se encontra no uso do inglês britânico: o Collins Handguide to the Wild Animals of Britain and Europe, Ovenden et al. 1979, um guia de campo para identificação, inclui, como criaturas, mamíferos, anfíbios (tais como sapos e salamandras) e répteis (tais como cobras e lagartos), mas não pássaros, peixes e insetos (que aparecem em outros volumes). Não estou certo de que exista uma outra língua que contenha um termo com exatamente essa distinção.

Dadas essas hierarquias lexicais, então A,B,C etc. representam sentidos de palavra, e as linhas que as unem representam relações de sentido. Os exemplos que seguem são de hierarquias não ramificadas (ligadas por conveniência).

(i)general   -   coronel   -   major   -   capitão   -   tenente   -   etc.

(ii)oceano   -   mar   -   lago   -   reservatório   -   poça

(iii)ardente   -   aquecido   -    quente   -   morno   -   frio   -   fresco   -   etc.

(iv)universitário   -   secundarista   -   colegial   -   primário

A necessidade estrutural para uma hierarquia ramificada advém de que os galhos nunca precisam convergir. Há dois tipos centrais de hierarquia lexical ramificada, que são chamados de taxonomias, estruturadas por hiponomia e incompatibilidade; e metonímias, estruturadas por relações metonímicas e co-metonímicas. A figura 10.3 ilustra um fragmento de uma taxonomia (válida para o inglês britânico).

Ponderamos que a hierarquia ilustrada na figura 10.3 pode ser estendida para cima, para baixo, para os lados, em última instância, produzindo uma gigantesca estrutura abrangendo todas as coisas vivas. A maioria das taxonomias são muito mais fragmentárias que essa, cobrindo áreas tais como veículos, construções, roupas etc.

[corpo [cabeça, tronco, braço, perna [coxa, panturrilha, pé [calcanhar, dedo do pé ] ] ] ]

Figura 10.4

Uma taxonomia típica possui níveis bem definidos: na figura 10.2, A está no nível 1; B e C estão no nível 2; D,E,F e G estão no nível 3. Um dos níveis de uma taxonomia que tem um status especial é o nível básico, pois a estrutura é organizada ao redor desse nível. É o nível no qual as melhores categorias ocorrem. Isso significa que a semelhança entre níveis companheiros e níveis distintos dos membros das categorias co-irmãs são ambos maximizados. Tome-se, por exemplo, as categorias ANIMAL, CACHORRO e VIRA-LATA. Animais são distinguíveis o suficiente de não-animais. Mas seu grau total de semelhança mútua é relativamente baixo; no caso de vira-lata, eles parecem estar num nível mais alto, mas diferem somente das formas menores de outros tipos de cachorro; na categoria CACHORRO, por outro lado, a distintividade e a semelhança mútua estão em níveis mais altos. Os itens de nível básico são também os nomes ausentes para coisas, nomes que usamos para simples referência, cotidianamente. Suponhamos que A ouve um barulho no jardim e pergunte a B do que se trata. B põe a cabeça pra fora da janela e vê um vira-lata. O que B poderá responder? Quaisquer das seqüências abaixo poderão ser verdadeiras:

(i)Ah, é somente um animal.

(ii)Ah, é só um cachorro.

(iii)Ah, é só um vira-lata.

Na ausência de circunstâncias especiais, (ii), que contém o item de nível básico, é de longe o mais plausível.

Alguns exemplos (em caixa alta) de itens de nível básico são os seguintes:

(a) veículo     -     CARRO     -     conversível

(b)fruta     -     MAÇà    -     maçã argentina

(c) coisa viva    -    criatura    -    animal    -    GATO    -    gato da ilha de Manx

(d)objeto     -     utensílio     -     COLHER     -     colher de chá

Um outro tipo central de hierarquia ramificada é a variedade parte-todo. (Tanto na figura 10.4, como na figura 10.3, somente alguns dos ramos são mostrados.) As hierarquias do tipo parte-todo são bem numerosas nos vocabulários de línguas naturais, como são as taxonomias. Elas diferem das taxonomias em alguns aspectos, mas, talvez, a maior diferença significativa diga respeito aos níveis estruturais: as metonímias tendem a não ter níveis, ou níveis desenvolvidos somente de forma fraca, nesses termos, não há um nível básico de taxonomia.

 

7.2 Famílias de palavra

Um outro tipo de agrupamento de palavras associadas é a família de palavra. A maioria dos lexemas complexos são construídos por uma raiz e por um ou mais afixos derivacionais. Por exemplo, a palavra descarregar é formada da raiz –carregar e do prefixo des–; o substantivo desamores é composto  pela raiz  –amor – ,  pelo  prefixo  des–,  e  pelo sufixo de plural –(e)s. Uma família de palavra é composta de todas as palavras derivadas de uma dada raiz. Por exemplo, os itens relacionados abaixo pertencem a uma família de palavra:

nação                        -         nacional               -          nacionalidade

nacionalmente          -        nacionalizar          -          desnacionalizar

nacionalismo             -        nacionalista          -          nacionalizado

internacional             -        multinacional        -          transnacional

Como falantes nativos, temos um conhecimento inteiramente complexo de quais derivações são possíveis, e o que elas querem dizer. Sabemos, por exemplo, que embora um pintor seja alguém que pinta, e a pintura seja o resultado final concreto dos esforços de pintar, um amador não é alguém que pratica o ato de amar, mas alguém que não é um profissional, e matador não é o resultado concreto do processo denotado pelo ato de matar (isto é, encerrar a vida de alguém), mas alguém que provoca o próprio ato. Sabemos também que enquanto comedor no português de Portugal significa refeitório, no português brasileiro comedor significa alguém que pratica o ato de comer, não necessariamente alimentos comestíveis, não havendo o mesmo paralelo que existe entre pintor e pintura, para comedor e comer. 

 

7.3 Vocabulário de domínio específico

 

Um outro tipo de agrupamento de palavras controlado por falantes nativos é o vocabulário apropriado para uma situação particular, por exemplo, um conjunto relacionado a uma corrida:

1.cavalo – favorito – garanhão – cores – vencedor – vantagem – desvantagem – alinhamento

2.jockey – proprietário – treinador – corretor de apostas  – estábulo – cavalariço

3.percurso – raça – rédeas – ponto de largada – cerco ao vencedor – disparada – cerca

4.apostar – correr – vencer – pular – apertar o cerco – entrar por dentro – cair – desclassificar – esfolar – etc

Um agrupamento amplo como esse é composto de um número de ninhadas de subdomínios, tais como pesar o cavalo antes e depois da corrida, corrida, largada, selar, raça veloz, congelar as apostas etc.

 

7.4 Camadas de vocabulário

Podemos usar a expressão camadas de vocabulário para nos referir a agrupamentos de palavras muito mais amplos, a cada uma das quais se incorporarão muitas estruturas, como aquelas descritas na rede corrida de cavalos, confinadas a certas áreas de uso. Por exemplo, há vocabulários técnicos, tais como aqueles usados por historiadores de arte, ou médicos, quando estão se comunicando com os seus próprios pares. Há também coleções de palavras que se juntam e se associam a níveis diferentes de formalidade. Tais níveis, sem esforço, evocam contextos apropriados, e devem, de alguma maneira, compor um estoque.    

7.5 O léxico mental

Cada um de nós possui um sistema cognitivo de algum tipo de inventário de todas as palavras que conhecemos, junto com todas as informações – semânticas, gramaticais, fonéticas e gráficas – necessárias para uso correto. Estima-se uma média em torno de 150.000 a 250.000 o número de palavras conhecidas por um falante adulto (veja dados como esses, por exemplo, em Aitchison (1987:5-7)). Isso representa uma quantidade imensa de informação.

O inventário é associado via formas escritas ou faladas, a cada vez que ouvimos ou lemos algo na língua que conhecemos, e via algum tipo de representação semântica, a cada vez que produzimos em língua (relembre que, por causa da sinonímia e da polissemia ampla, o mapeamento entre formas e significados não é um-a-um, mas muitos-a-muitos). Embora muito seja conhecido, os detalhes de representação e processo de uso são ainda imperfeitamente entendidos; sem sombra de dúvida, a velocidade extraordinária com a qual as palavras são recuperadas e identificadas – em torno de um quarto de segundo assim que a palavra é pronunciada pelos falantes nativos – pontifica uma alta eficiência, e um sistema de armazenamento organizado.

O léxico mental de cada pessoa é diferente do léxico mental de todas as outras pessoas; mas, de um modo geral, nos esforçamos para entender uns aos outros; isso presumivelmente indica um grau avançado de sobreposição entre os léxicos individuais.

 

7.6 Vocabulários

Além do léxico mental dos falantes individuais de uma língua, é possível pensar num estoque lexical total de uma língua, que cobriria o domínio de todos os seus falantes, incluindo aqueles que pertencem a comunidades de fala distintas, inclusive aquelas comunidades que, por ventura, não existam mais. Claro que as fronteiras de tais comunidades são muito vagas, e diferirão de acordo com os propósitos dos compiladores e usuários (até quando recuar no tempo para incluir palavras num vocabulário? quantos dialetos ou formas técnicas incluir? etc). O lar natural para um vocabulário é o dicionário, e a forma natural de redigi-lo é partindo de um corpus. Os conteúdos de um dicionário não correspondem aos conteúdos do léxico mental de um falante em particular, nem representam o que é comum para todos os falantes; e ainda, nem todas as entradas podem ser justificadas por um grau de pertencimento comum a uma ou outra das sub-comunidades de uma língua em uso.

 

8. Conclusão

Examinamos, em linhas bem gerais, um domínio amplo de palavras de uma língua, de propriedades detalhadas de palavras individuais a propriedades relacionais, tanto nos eixos sintagmático quanto paradigmático, como também comunidades de palavras e suas estruturas, de forma ampla e restrita, aberta e fechada.

Temos em mente, entretanto, que aspectos detalhados estão ainda por ser entendidos, e muitos desses aspectos são objeto corrente de intensa atividade de pesquisa. Dois grandes estímulos recentes de pesquisa em torno do léxico vale a pena ressaltar. O primeiro deles tem sido o advento de supercomputadores, e a tentativa de a lingüística computacional desenvolver programas capazes de entender textos de línguas naturais. Os problemas sintáticos têm sido relativamente bem tratados; o grande problema se volta agora para o léxico – decidir o que um computador deve saber sobre significado de palavras, e como elas podem ser representadas. O segundo grande estímulo tem sido o desenvolvimento de um corpus de fala em escala ampla, e de um corpus em língua escrita (junto a ferramentas para processá-las), que permita um quadro acurado para garantir como as palavras são, de fato, usadas. Isso tem, entre outras coisas, revolucionado a lexicografia, e sem dúvida os resultados mais amplos de ambos os estímulos estão ainda por ser vistos.[x]    

 


[i] The Lexicon, D. A. Cruse. The Handbook of Linguistics. Org. Mark Aronoff e Janie Rees-Miller, Balckwell,  USA,  2001. Tradução e notas: Braulino Pereira de Santana.

[ii] Night rate: preço noturno; Nye trait: marca do Senador Nye. Gerald Nye (1892-1971), Senador por Dakota do Norte, EUA; parks treat: piquenique no parque; Park Street: Rua do Parque.

[iii] O autor se refere à cultura americana.

[iv] Entre os nativos Nenets, da Sibéria, Nga era o deus da morte, como também um dos demiurgos, ou Deuses Supremos.

[v] Cubo desenhado pelo cientista suíço Luis Albert Necker (1786-1861), e publicado num trabalho de 1832, cujas linhas dão a ilusão de profundidade.

[vi] Bonito, bonitão, elegante.

[vii] Moça que rompe noivado ou acaba namoro.

[viii] Morcego, bastão, raquete; (dentre outras entradas).

[ix] Criatura, pássaro, papo-roxo (pássaro), águia, peixe, bacalhau, truta, animal, gato, cachorro, collie, spaniell, inseto, abelha, borboleta.

[x] A tradução das palavras do inglês nas notas de rodapé 6, 7, 8 e 9 foi extraída de: Webster’s – Dicionário English-Portuguese Illustrated, vol. 1, Record, 1982.


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