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O VÍRUS DA INDIFERENÇA EM MUITOS NATAIS

O VÍRUS DA INDIFERENÇA EM MUITOS NATAIS

 

João Batista de Castro Júnior. Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista.

 

Nem por muito repetida, a história do siberiano Evgeny Stepanovich Kobytev deixa de impressionar até os dias atuais: modesto professor de pintura saído da zona rural, tem sua vida revirada quando Hitler invade a Ucrânia em 1941 e bombardeia a Geórgia. 

Kobytev então ingressa como soldado em um regimento da artilharia do Exército Vermelho para pouco tempo depois ser feito prisioneiro pelos alemães numa emboscada, sendo enclausurado no campo de concentração de Khorol, onde se estima que 90.000 civis e combatentes tenham encontrado a morte. Depois de conseguir fugir em 1943, ainda servirá em outras frentes de batalha até o final da guerra.

As imagens de Kobytev antes e depois dos seus 4 anos de intensas vivências belicosas mostram um homem precocemente envelhecido e com o olhar fixo e distante, alheio ao mundo em seu derredor, o mesmo olhar cognominado de “mil jardas” (Thousand-yard stare) pela revista norte-americana Life no final da Segunda Guerra para um fenômeno observável desde o Primeiro Grande Conflito entre os jovens combatentes: a desconexão dissociativa para com os horrores à sua volta, como a fácies daquele soldado australiano com a mão decepada em um hospital de campanha em 1917, perto de Ypres.

Soldado australiano no "Australian Advanced Dressing Station", perto de Ypres, Bélgica, em 1917.

Esperançosamente se prevê que não teremos mais conflitos bélicos dessa ordem, capazes de convulsionar à exaustão a demografia planetária. Mas a inquietação que a pandemia provocada pelo Sars-Cov-2 suscita é se ela não estaria, de modo funcionalmente similar, naturalizando o luto enquanto se come e bebe festivamente, fingindo-se não ver os despedaçamentos emocionais bem próximos e o sofrimento dos que esmolam uma côdea de pão quando preferiam estar endurecendo as mãos nas enxós do trabalho honesto.

São invernos de ausência de solidariedade mais ampla – não aquecíveis pelos “presentinhos natalinos” – e que nada têm de recente. Em algum momento, não localizável em ponto específico da linha de contagem humana de tempo, nos deixamos natural e insensivelmente abrigar nas hostilidades interpessoais, nas impropriedades chulas da linguagem cotidiana, na conveniente tolerância limitada a reduzidos nichos de trabalho, em que se barganham posições de relevo, ou na “gratidão” volátil da contraprestação momentânea por um favor recebido.  

Nossos olhares, a seu turno, quase imperceptivelmente se destacaram das enfermiças obviedades que preferimos não enxergar, ajudados até mesmo por muitas trincheiras da religião, que passaram a ser, sem que se saiba também exatamente como nem quando, poços contaminados pelo veneno dos interesses materialistas e dos partidarismos inconsequentes, que sabem de cor versículos bíblicos desaparelhados do amor solidário e impessoal.

Sem muito esforço se nota que explicações religiosas e místicas completamente pueris no seu punitivismo aterrorizante, além de não convencerem, terminam insuflando mais ainda a corrida pela satisfação material, seja entre os que estão nos Templos julgando-se alforriados das sanções divinas, seja entre os que estão fora e que veem no prazer do sexo e do estômago a demonstração cabal de que se trata do melhor convite que a transitoriedade biológica da vida pode oferecer, afinal, assim se pensa, todos os alertas de fim dos tempos de nossos avós nunca se transformaram em realidade.

“Quando isso tudo passar” – a frase mais ouvida por agora –,  teremos, em realidade, que buscar, nas últimas reservas de lucidez, a coragem necessária a fim de, mesmo sob fortes sequelas psíquicas, reconstruir as bases de uma vida irrestritamente solidária e propensa ao sacrifício dos prazeres ilimitados, o que Jesus, o Cristo, exaustivamente pregou e exemplificou sem distinguir entre mulher adúltera, mulher samaritana, mulher cananeia, publicanos, fariseus, escribas, soldados romanos e plebe, numa luminosa e extraordinária epopeia até hoje, em plena era de múltiplos e refinados saberes, não devidamente compreendida em sua totalidade.

Até que isso tudo passe, todavia, talvez tenhamos por algum tempo que carregar intimamente tanto os silenciosos ônus emocionais quanto os olhares distantes e desfocados, para depois aprendermos a semear lírios entre os escombros que friamente preferimos não ver desabar à nossa volta...

Vitória da Conquista, 25 de dezembro de 2.020

 


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