Artigos & Produções Acadêmicas

“JEITINHO BRASILEIRO” E ENVILECIMENTO DA PROBIDADE

“JEITINHO BRASILEIRO” E ENVILECIMENTO DA PROBIDADE

O brasileiro é mundialmente conhecido por “dar um jeitinho para tudo”. Fato. Porém, esse “jeitinho”, marcado por uma incrível habilidade de improvisação e criatividade, no tempo em que orgulha por revelar o potencial de um povo para resolver seus problemas de modo criativo e se adaptar a variadas circunstâncias, envergonha por ocultar uma face condenável dessa marca cultural: a normalidade de agir corruptamente para obter benefícios pessoais.

Sim, normalidade. Porque, em se tratando de julgamento pessoal entre coisa pública e coisa privada, parece haver dois pesos e duas medidas. Basta olhar o cotidiano para notar que furar uma fila ou subornar um agente de trânsito para se livrar de uma multa são acontecimentos comuns e até banais. Pensar que um troco recebido a mais não vai “fazer falta” ou que sonegar impostos frente à “gula” do Fisco não é nada demais, também.

Isso nos leva a crer que, a depender da situação que se vive, as noções de ética e probidade podem ser relativizadas. Diante de tantos corruptos e corruptores no governo, de tanta “gente grande” cometendo atos ilícitos e restando impune, as pessoas se recusam a entender um mero desvio individual como corrupção. E, de qualquer modo, por mais que seja errado, “todo mundo faz” e não é reprimido! Então, seria muito incoerente fazer a lei valer logo para punir atos tão pequenos, correto? Parece que sim. Consequência disso não é outra senão a notória descrença nas leis que temos hoje.

Talvez isso seja um reflexo desta contemporaneidade fluida, em que tudo é flexível, tudo é relativo. O fato é que esses desvios de conduta, cotidianos e encobertos, que chamamos carinhosamente de “jeitinho brasileiro”, evidenciam uma contradição entre o Brasil que temos e o que reclamamos. Afinal, a população se indigna com a crescente corrupção no setor público, mas caminha para a relativização dos pequenos delitos e desobediências.

Legado histórico

Na verdade, essa naturalização de “pequenos” desvios de conduta está tanto mais ligada a aspectos culturais, políticos e econômicos do que, realmente, ao caráter individual do brasileiro. E prevalece por conta da impunidade, que alarga os limites morais e acaba dando suporte à continuidade dos atos.

A história do Brasil pode delinear alguns dos comportamentos dos cidadãos na atualidade. Por exemplo, os primeiros habitantes “estrangeiros” da terra tupiniquim, os portugueses, não vieram para cá a fim de promover a construção e o desenvolvimento de uma sociedade com fim em si mesma.  A colonização brasileira não foi feita para o proveito da sociedade, mas, sim, para servir aos interesses da Coroa portuguesa e de um grupo restrito a ela associado.

Resultado disso, tantos anos após, é que o brasileiro não tem em si o sentimento de que pertence ao Estado, de que é governado por ele, de que as leis foram criadas para regular as relações de que ele participa e para assegurar um compromisso entre Estado e povo. Não houve, portanto, a construção saudável de uma identidade nacional, de uma consciência coletiva de respeito ao interesse público.

 “Quem não tem ‘teto de vidro’ que atire a primeira pedra”

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”, disse o ilustre Rui Barbosa em sua Oração aos Moços.

Pensamento muito adequado ao contexto. Temos falado de envilecimento da probidade como se as noções de moralidade e ética estivessem perdidas no Brasil contemporâneo, mas o fato é que essa deficiência sempre existiu, é histórica. No entanto, o conflito entre a miséria material e a miséria moral se expandiu em todos os níveis sociais, oferecendo alimento para que a criminalidade e os escândalos se disseminassem.

Hoje, no Brasil, impera uma cultura nacional de rejeição ao que é público, como se o Estado não devesse ser “levado a sério”, porquanto não trabalha em prol do bem comum. Em contrapartida, numa espécie de exercício arbitrário das próprias razões, observando a coisa pública servindo a interesses particulares, o cidadão comum acaba agindo para “garantir o seu”. E dá seu “jeitinho”.

Além disso, analisando com propriedade esse tão famoso “jeitinho brasileiro”, Roberto DaMatta o apontou como  uma  forma  de driblar  a  excessiva  quantidade  de  regulamentação dos assuntos nacionais,  por  vezes  criadora  de  proibições  que  se afastam  da  realidade  social e inviabilizam a ação proba (não que isso justifique algo!).

Diante do cenário atual, parece que o brasileiro cansou de ser honesto (ou nunca aprendeu a sê-lo realmente). O típico brasileiro cordial de quem falava Sérgio Buarque de Holanda, na verdade, quer afirmar sua supremacia ante o social, porque ele sente dificuldade em diferenciar o privado do público, porque tende a rejeitar a impessoalidade do sistema administrativo estatal, porque ele assiste à política acobertando interesses privados sob uma capa de amabilidade.

Mas não vale apontar o dedo! Por que não? Os casos de improbidade, por exemplo, hoje largamente divulgados pela mídia, nada mais são que uma exteriorização do comportamento da população. Os políticos corruptos para os quais apontamos o dedo são, também, reflexo de um povo culturalmente corrupto (ainda que “de leve”).

Com base nisso, observamos que o “jeitinho brasileiro” é inerente ao povo não como algo intencional, mas como comportamento inconsciente.  Ainda assim, isso não autoriza ninguém a julgar e condenar os atos de outrem (à exceção do Judiciário) ou sopesar a gravidade dos atos, que passariam a ser julgados muito mais por comparação a outros, mais ou menos severos, do que por si.

Em suma, a prática generalizada do “jeitinho” nos levaria a julgar ações corriqueiras, como comprar produtos “pirata” ou estacionar em local proibido, como menos erradas ou merecedoras de punição do que as ações de políticos corruptos, por exemplo, numa tentativa de justificar desvios em ações individuais e, assim, amenizar a gravidade de atos corruptos em essência.

O beija-flor e o incêndio na floresta

Diante de tudo isso, é possível crer na possibilidade de um futuro promissor para uma sociedade com estruturas culturalmente deterioradas, como é a brasileira, e, assim, restaurar o valor da probidade na conduta humana?

Os caminhos mais óbvios rumo à solução dessa questão seriam a fiscalização e punição adequada para atos corruptos e a educação (sempre!). Entretanto, as raízes do problema têm profundeza histórica, de modo que emerge necessária a desconstrução de costumes há muito arraigados na cultura brasileira, instrumentalizada em intervenções cirúrgicas nas estruturas de poder e no sistema educacional.

Então, da mesma forma que importa dirimir a impunidade e a descrença nas leis, aumentando a sensação de justiça e, consequentemente, alcançando a pacificação social, cabe às entidades educacionais desfazer os erros perpetuados pela história e ensinar noções de pertencimento e de esforço coletivo, para formar pessoas críticas e comprometidas com seus pares.

É esse o princípio para uma reforma ética generalizada. Contudo, toda mudança, para ser efetiva, deve começar em cada indivíduo. Para que a sociedade melhore, cada um deve cuidar de si antes. É imprescindível “dar um basta” na mania de procurar levar vantagem em tudo, de “dar um jeitinho” para tudo, de fugir dos próprios deveres. Clichê, mas funciona!

 

Lorena Rizério

Graduanda em direito da UNEB Brumado

Leia mais